Espírito de brilho definido



Estava no meio do salão, de vestido longo roxo. Cabelos levemente presos, suados. A noite já tinha sido deveras longa. Tinha bebido razoavelmente. Um pouco de vinho, um tanto de cerveja e pequenas porções de tira-gosto ao lado. Estava animada e tomada por uma vontade incontrolável de dançar. Luzes coloridas e frenéticas entre paredes escuras iluminavam o recinto.
Somente eu e a aparelhagem de som. Do outro lado, uma platéia considerável a me observar, a conversar, a bocejar, a se despedir, a chegar. Depois de um passeio por vários ritmos, começa uma seleção musical de sambas. Danço todos eles sem pestanejar.
Não era qualquer samba que eu estava ali a me dedicar com o que ainda me restava de fôlego, já nos idos do final da noite. Era Clara Nunes. Foi a primeira vez que me pus a dançar ao som da voz firme e charmosa da mineira. A conhecia, a ouvia, mas dançar eu nunca tinha me dado oportunidade.
Primeiro, trechos de “Ê baiana”: Baiana boa/Gosta do samba/Gosta da roda/E diz que é bamba/Baiana boa/Gosta do samba/Gosta da roda/E diz que é bamba. Depois, “Aruandê...Aruandá”: Minha gente abre a roda/Eu acabo de chegar/Trago coisas da Bahia/Nas canções que vou cantar/Aruandê...Aruandá/Eu vim da Bahia pra cantar.
Depois de dançar essas duas primeiras músicas, algo estranho estava por se instalar. O fôlego que estava pouco se recuperou rapidamente para o clímax da noite, quando se pôs a ecoar os versos de “O Mar Serenou”: O mar serenou quando ela pisou na areia/Quem samba na beira do mar é sereia/O pescador não tem medo/É segredo se volta ou se fica no fundo do mar/Ao ver a morena bonita sambando/Se explica que não vai pescar/Deixa o mar serenar. Em seguida, “Canto das Três Raças”: Esse canto que devia/Ser um canto de alegria/Soa apenas/Como um soluçar de dor.
Estive ali e me senti preenchida. Dancei como se fosse a coisa mais importante que poderia fazer naquele dia, naquele local, naquela hora. Dancei como se alguém me mandasse fazê-lo. Rodei o vestido, rebolei, os pés estavam compassados como se eu soubesse o que fazer e a forma para que fosse singular. Às vezes, levantava levemente os braços como se algo estivesse por me chamar, acompanhar. Segurei o vestido, o levantei, deixando em um cumprimento acima dos joelhos. Fiz isso com as mãos na cintura.
Enquanto estava acolá, numa dessas, um tio disse para quem estava próximo: “Thamirys tem o corpo aberto”. Após a festa, quando já grande parte dos convidados havia ido embora, eu ficara ali. Só, alegre, satisfeita com a noite, tomada por um sentimento indescritível. Saí dali, fui em direção à mesa, quando outro tio disse: “Beto disse que você tem o corpo aberto”. Ao ouvir isso, fiquei ali estática, analisando a consideração.
Depois de poucos minutos pensando sobre, aquilo me amedrontou. Depois de um pouco mais de tempo, o medo foi passando e fui começando a concordar com a breve frase. Aquietei-me, afinal, aquilo poderia mesmo ser verdade, mas não havia constatação porque havia sido só uma vez.
Em outra ocasião, outra data, mesmo local, mesmo horário, me peguei em momento semelhante. Sentada, ouço meu tio aos berros a me chamar. Fui em direção onde ele estava fazendo a discotecagem da festa. Quando estou no meio do caminho, ele completa o grito: “Thamirys, essa é especial para você”.
Não custou adivinhar o que era. Novamente, Clara Nunes. Fui ao salão, num silêncio quase ritmado, dei um sorriso para ele e lá estava eu e ela novamente. A cena se repetiu.
No decorrer do tempo, a situação foi se expandindo. Senti algo semelhante certa vez ao ouvir “Canto de Ossanha”: Amigo sinhô/Saravá/Xangô me mandou lhe dizer/Se é canto de Ossanha/Não vá/Que muito vai se arrepender/Pergunte pr'o seu Orixá/O amor só é bom se doer. Nunca dancei essa, afinal, o ritmo é bem lento, mas o sentimento é muito parecido.
Há alguns meses, descobri outra cantora que me faz correr à plenitude. É a conterrânea Rita Ribeiro. Seu CD Tecnomacumba é tão carregado de sabor que parece que quando o ouço me sinto saciada.
Ontem, quando estava no carro, ao ouvi-lo já de madrugada, lá veio ela, me chamando. Rita Ribeiro. Dessa vez, fiquei pacata por alguns minutos apenas sentido o que a música tinha a repassar. Comecei a olhar para o lado de fora do veículo. Na paisagem, a Lagoa da Jansen, um dos pontos turísticos de São Luís. Serena, me vi do lado de fora, novamente rodando o longo vestido que estava. Algo me disse para fazê-lo, mas não fiz.
No intuito de explicar e saciar minha curiosidade de saber o significado desses momentos, disseram-me recentemente: "Significa que você tem um espírito bem aberto e sensível ao sagrado por meio da música". Agora, estou aqui, esperando um “tempo de modo que o meu espírito ganhe um brilho definido”.

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Thamirys D'Eça

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